Ultimamente, tenho observado um fenómeno preocupante — e, ao mesmo tempo, sintomático da crise de identidade institucional que vivemos. Muitos gabinetes de comunicação de ministérios, governos provinciais, administrações municipais e até da Procuradoria-Geral da República (PGR) passaram a produzir conteúdos para as redes sociais como se de jornalismo se tratasse.
Carlos Alberto jornalista
A questão do Ministério do Interior é apenas o exemplo mais visível. O ministro Manuel Homem tornou-se um locutor-pivot improvisado: faz entrevistas em directo, chama comandantes provinciais para lives semanais — e, evidentemente, ninguém discorda do ministro, sob pena de ser exonerado em directo. O problema é que, por mais que a intenção seja “comunicar melhor”, não basta ser ministro para dominar as técnicas de locução, nem substituir o papel de um jornalista numa entrevista. Falar muito não é o mesmo que esclarecer, e exibir-se não é o mesmo que informar com rigor.
Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) parece ter entrado na mesma onda. Vi um “jornal digital” — ou algo que se lhe assemelha — partilhado por funcionários da instituição, com uma secção intitulada “Notícia”. Fiquei perplexo: desde quando a PGR faz “notícias”? Pôr alguém do gabinete a redigir textos sobre eventos internos é jornalismo? Se o Estado produz a sua própria narrativa e lhe chama “notícia”, então o jornalista tornou-se dispensável — e o assessor passou a ser o novo editor da verdade oficial.
Por definição, um assessor de imprensa é o elo entre a instituição e os media: quem gere a imagem, redige comunicados e organiza conferências de imprensa. Já o jornalista é quem recolhe, verifica e divulga informação de interesse público de forma independente.
O primeiro representa o poder; o segundo representa o público.Quando o assessor se transforma em jornalista, o poder começa a falar sozinho. Estamos a assistir ao poder falar consigo próprio — sem escrutínio.
A Assembleia Nacional segue na mesma direcção. Já adquiriu equipamentos de última geração para fazer rádio e televisão. Vai concorrer com a RNA e a TPA? Todos são do Estado! Com o mesmo patrocinador: o OGE.
Os governos provinciais e as administrações municipais estão a redigir notas de imprensa para enaltecer os titulares do pelouro, por terem sido condecorados pelo Presidente da República, colocando um carimbo de “competência”.
E é aqui que a parábola da vida real se impõe.
Imagine-se um fazendeiro que decide construir um celeiro para guardar o milho da colheita. Em vez de contratar pedreiros, convida o seu assessor — bom de discurso, mas sem prática. O assessor organiza reuniões, faz um plano de “visibilidade”, compra tijolos novos e grava vídeos para as redes. O celeiro ergue-se torto, o telhado mal pregado, mas o assessor exibe orgulhosamente uma placa dourada: “Celeiro Modelo — Comunicação Eficiente”.
Quando chega a tempestade, o celeiro cai. Só a placa fica intacta.
Os gabinetes de comunicação institucional deveriam existir para facilitar o trabalho dos jornalistas, não para os substituir. Mas a moda agora, em Angola, é outra: câmaras, microfones, estúdios e lives financiadas com dinheiro público, produzindo conteúdos que imitam o jornalismo, mas sem rigor, sem ética e sem contraditório.
É triste, mas muitos desses gabinetes gastam recursos do Estado para criar “noticiários internos”, enquanto escolas estão sem carteiras, hospitais sem medicamentos e tribunais sem papel para imprimir acórdãos. Há, neste momento, uma greve de Oficiais de Justiça a decorrer porque reclamam das condições de trabalho.
Chegam a não ter tinteiro para imprimir um documento. O objectivo já não é informar o cidadão, mas proteger, a todo o custo, a imagem de quem governa.
E, quando o assessor quer ser jornalista e o ministro quer ser apresentador, entra-se num perigoso território de arrogância institucional. O resultado é previsível: a sociedade fica sem referência, os jornalistas sem espaço e o poder sem espelho.
Até negam dar entrevistas aos jornalistas que pretendam fazer escrutínio público porque eles próprios já têm o seu espaço para o show-off.
A fronteira que o poder insiste em atravessarEm democracias maduras, essa fronteira é clara.
O assessor comunica em nome da instituição, com base em dados oficiais. O ministro, o governador, o administrador, o procurador são fontes oficiais. Não são eles próprios jornalistas nem produtor de conteúdos jornalísticos.
O jornalista, por sua vez, comunica em nome do público, com base na verdade. O jornalismo é um poder fora dos três poderes. Um fornece informação oficial; o outro transforma-a em conhecimento noticioso, com critérios próprios. Na Alemanha, no Brasil ou em Portugal, nenhum assessor institucional publica “notícias” como se fosse repórter.
É considerado anti-ético e perigoso para a transparência. Aqui, porém, estamos a banalizar a fronteira entre o que é comunicação institucional e o que é jornalismo — e, quando essa fronteira desaparece, nasce a propaganda barata. A lição que ficaO país não avança porque não respeita o papel de cada um.O assessor deve ser ponte, não palco.
O ministro deve ser fonte, não apresentador.
E o jornalista deve continuar a ser voz, não eco.Um assessor ou um ministro que quer ser jornalista é como um árbitro que marca golo e comemora com o jogador — o jogo perde credibilidade e o público perde interesse.
Há em Angola um vírus mais resistente do que o da Covid-19: o vírus da confusão de papéis, que transforma a comunicação institucional em teatro e o jornalismo em figurante.
E é por isso que a nossa democracia continua a tropeçar no espelho da vaidade: em vez de reconstruir o celeiro, preferimos continuar a polir a placa.
E há sempre apoiantes, nas redes sociais, para aplaudir a mediocridade à espera da “mixa”.
