Putin “perdeu completamente o controlo da situação” na Transnístria e mostrou ao mundo que a Rússia está “em sobreextensão”

Uma crise humanitária começa a desenhar-se no horizonte na região que serviu de modelo para a expansão da Rússia de Putin. Mais de 450 mil pessoas de um enclave separatista pró-russo estão a preparar-se para o pior, depois de terem ficado sem acesso ao gás. Agora, com Moscovo de “mãos atadas”, o Kremlin prepara-se decisões difíceis
Segundo a CNN, durante a noite, as temperaturas atingem vários graus negativos. Durante o dia, a situação não é muito melhor para quem não tem aquecimento. Sem gás natural russo através da Ucrânia desde o dia 1 de janeiro, os 450 mil habitantes da região separatista da Transnístria estão às portas de uma catástrofe humanitária. As autoridades locais cortaram a eletricidade durante oito horas por dia, cortaram o aquecimento, o acesso a gás e interromperam o abastecimento de água. Para os especialistas, esta situação abre “uma caixa de Pandora” que ameaça mostrar ao mundo que a Rússia é uma potência “com pés de barro”, mas o Kremlin ainda pode ter uma palavra a dizer.

“Vladimir Putin perdeu completamente o controlo da situação. A Rússia está claramente em sobreextensão e não consegue fazer muito mais do que o que está a fazer na Ucrânia. Atualmente, Moscovo esgotou a sua capacidade e não consegue acudir as pessoas que estão dependentes de si noutras partes do mundo. A situação tornou-se extremamente volátil na Transnístria e pode resultar numa enorme crise humanitária”, explica à CNN Portugal Diana Soller, especialista em Relações Internacionais.

Durante mais de 30 anos, esta região separatista da Moldova viveu à custa de gás natural que recebia a custo zero de Moscovo através dos gasodutos que atravessam a Ucrânia. Este subsídio permitiu às autoridades locais manter artificialmente a atividade económica, continuando assim vivas as pretensões do Kremlin de poder vir a incorporar esta república no seu território, tal como fez com Donetsk e Lugansk, na Ucrânia.

Mas o fim do fornecimento dos dois mil milhões de metros cúbicos de gás natural por ano, após o presidente Volodymyr Zelensky ter decidido não renovar o acordo de trânsito de gás russo através de território ucraniano, está a precipitar a região para uma crise de dimensões sem precedentes. O próprio presidente da região separatista, Vadim Krasnoselsky, não esconde a gravidade da situação e definiu publicamente que o objetivo do seu executivo é “não permitir o colapso social”. As medidas tomadas mostram bem a gravidade da situação. Todas as indústrias, com exceção dos produtores de alimentos, tiveram ordem para fechar.

“Todo o modelo da Transnístria está dependente do gás russo gratuito. Sem gás russo gratuito, todo o sistema entra em colapso. Só que não acho que a Rússia vá deixar isso acontecer em breve. Eles ainda precisam da Transnístria”, garantiu Alexandru Flenchea, antigo vice-primeiro ministro da Moldova e responsável pela reintegração da Transnístria, em declarações ao The New York Times.

Só que os primeiros sinais de que uma crise humanitária está iminente já são visíveis. Com o corte do aquecimento dos edifícios residenciais, milhares de pessoas correram para comprar pequenos aquecedores elétricos e isso fez com que o consumo de eletricidade nas zonas residenciais duplicasse. Incapazes de aguentar essa pressão na rede, as autoridades da Transnístria ordenaram que a eletricidade fosse cortada oito horas durante o dia. Muitos dos habitantes encontraram uma solução nos antigos fogões a lenha e, na segunda-feira, um casal de idosos morreu intoxicado por monóxido de carbono. Outras duas pessoas perderam a vida carbonizadas, depois de o seu aquecedor ter pegado fogo.

Para a liderança política da Moldova, esta crise está a ser criada artificialmente pelo próprio Kremlin com o objetivo de afetar diretamente a política da região. Aproximadamente 70% da energia elétrica da rede da Moldova era fornecida através da maior central elétrica da região, localizada na Transnístria. Esta central, que transformava o gás russo em energia elétrica para a vender à Moldova, era também um instrumento geopolítico de Moscovo. O governo em Chisinau acredita que Vladimir Putin quer utilizar a crise humanitária para semear descontentamento contra o governo pró-Europeu, a menos de seis meses das eleições parlamentares, e à semelhança do que terá tentado fazer nas presidenciais recentes que acabaram com a vitória da pró-Ocidente Maia Sandu.

Ao contrário da Transnístria, o governo da Moldova, antevendo a não renovação do contrato entre a Ucrânia e a Rússia, procurou encontrar alternativas ao fornecimento de energia no país. A medida fez com que os preços da energia subissem para os consumidores, mas afastou do país o fantasma dos apagões e do racionamento energético. Para José Filipe Pinto, professor catedrático especialista em Relações Internacionais, apesar de a Rússia estar “de mãos atadas” quanto à possibilidade de fornecer gás à Transnístria, o Kremlin está já a pensar capitalizar com o sofrimento dos habitantes da Transnístria e com a revolta dos preços dos cidadãos da Moldova. Moscovo prepara-se para pôr em ação o seu sharp power – uma combinação de diplomacia, manipulação política e propaganda – para convencer a opinião pública da Moldova de que a culpa dos elevados preços da eletricidade que se vão sentir são culpa do governo ucraniano.

“A partir do momento em que a Ucrânia decidiu impedir a passagem de gás russo, sabia que estava a abrir uma caixa de Pandora. Putin está focado na Ucrânia e não pode dar a atenção à Transnístria que daria noutra situação. Mas vai tentar capitalizar o descontentamento da Transnístria contra a Ucrânia. O agente que vai ser responsabilizado junto da opinião pública vai ser a Ucrânia”, antevê José Filipe Pinto.

O executivo da Moldova teme que o objetivo russo seja precisamente obter aquilo que não conseguiu pela margem mínima no ano passado: afastar a Moldova da esfera do Ocidente, elegendo um partido anti-adesão à União Europeia. Por esse motivo, o primeiro-ministro moldavo Dorin Recean sugere que, “à medida que as eleições parlamentares da Moldova se aproximam”, o Kremlin está prestes a “lançar uma campanha de desinformação visando Chisinau e Kiev” que pode levar à desestabilização de toda a região, particularmente na Transnístria, onde 1.500 soldados russos estão destacados com o “pretexto de manutenção de paz”.

Para contrariar os planos de Vladimir Putin, o governo de Chisinau abordou as autoridades pró-russas em Tiraspol, capital da Transnístria, para oferecer uma solução para os problemas da região. Mesmo antes do corte do fornecimento, a Moldova sinalizou estar disposta a encontrar um fornecedor de gás para a região que teria de ser pago “a preço de mercado”. O governo dos separatistas pró-russos rejeitou essa hipótese. O primeiro-ministro da Moldova foi mais longe e disse mesmo que não se oporia caso Kiev oferecesse auxílio energético a Tiraspol, de forma a combater a desinformação russa.

Ainda assim, os analistas não sabem se isso será suficiente para travar a máquina da propaganda de Moscovo. A Transnístria é um Estado policial, meticulosamente controlado por uma elite política próxima do Kremlin. A vasta maioria da sua economia é controlada por oligarcas com ligações aos antigos serviços secretos soviéticos, em particular a empresa Sheriff, que é proprietária de supermercados, bombas de gasolina, farmácias, canais de televisão, empresas de construção e até mesmo um clube de futebol – que alcançou algum sucesso internacionalmente com uma presença recente na Liga dos Campeões. Tudo é controlado ao detalhe e a informação não é exceção. Os meios de comunicação locais foram rápidos a culpar a Ucrânia, os Estados Unidos e a Moldova. Culpa de todos menos da Rússia.

A incapacidade de atuar na Transnístria não é um sinal que se deva ignorar. Foi aqui, em 1990, em plena queda da União Soviética, que o movimento separatista que exigiu independência da Moldova (com o apoio russo) se tornou no modelo favorito da Rússia de Putin para reconquistar os territórios do antigo império comunista. Primeiro na Moldova, depois na Geórgia e, por fim, na Ucrânia, onde o presidente russo desencadeou a maior invasão na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Idosa observa a cidade de Tiraspol numa das pontes que atravessa o rio Dniestre (Associated Press)

Esta região era vista pelo Kremlin como valiosa o suficiente para “oferecer” milhares de milhões de euros em gás natural, subsidiando uma economia inteira. Só que a guerra na Ucrânia consumiu todos os outros projetos geopolíticos russos. Para Moscovo, nenhum dos outros objetivos geopolíticos é prioritário enquanto a guerra na Ucrânia estiver a decorrer. O orçamento de Defesa da Rússia é sinal disso, absorvendo mais de um terço de todo o bolo estatal, numa altura em que a economia russa começa a demonstrar sérios sinais de instabilidade. Todos os recursos e todos os esforços estão postos no campo de batalha e no enfraquecimento dos aliados da Ucrânia.

Um sinal claro da incapacidade russa de atuar noutros teatros de operações é na Síria, onde, depois de quase uma década a combater lado a lado com o regime para manter o aliado Bashar al-Assad no poder, Vladimir Putin deixou o governo sírio cair nas mãos dos rebeldes, que conquistaram o país em poucas semanas. Com Moscovo de mãos atadas e com uma crise humanitária ao virar da esquina, a Transnístria pode ver-se obrigada a tomar uma decisão que vá contra os interesses do Kremlin.

“Neste momento, a Rússia não consegue ir acudir além das sua maior necessidade premente, que é o esforço de guerra na Ucrânia. Vladimir Putin não consegue garantir à província separatista que depende de si o normal fornecimento de gás, e arrisca-se a que a Transnístria tome uma decisão que vá contra os interesses russos”, garante Diana Soller.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *